A Internalização dos Signos como Instrumentos de Autorregulação: Contribuições de Luria
Descubra como os signos culturais externos se transformam em instrumentos psicológicos internos que tornam possível a autorregulação da cognição, emoção e comportamento.
6/11/20256 min read
Alexander Luria, colaborador direto de Vygotsky, ofereceu contribuições fundamentais para compreendermos como os signos culturais externos se transformam em instrumentos psicológicos internos que tornam possível a autorregulação da cognição, emoção e comportamento. Luria demonstrou, através de pesquisas empíricas brilhantes (incluindo estudos com camponeses iletrados e alfabetizados na URSS pós-revolucionária e com pacientes neurológicos), que o processo de internalização não é passivo, mas uma reconstrução ativa que reorganiza funcionalmente o cérebro e a mente.
Inicialmente, o signo (como a palavra falada por um adulto ou um gesto indicativo) atua como um regulador externo do comportamento da criança. Por exemplo, a mãe diz "Não!" e segura a mão do bebê que tenta tocar algo perigoso, ou aponta "Olha o avião!" direcionando sua atenção. Nessa fase, a regulação é interpsicológica, ou seja, dependente do outro.
O momento crucial, descrito por Luria, ocorre quando a criança começa a usar ativamente esses signos ela mesma, primeiro de forma externa e vocalizada, para guiar sua própria ação. Ela fala em voz alta enquanto desenha ("Agora vou fazer a janela..."), repete as regras de um jogo para si mesma ("Não pode pisar na linha!"), ou diz "calma, calma" ao se frustrar. Essa linguagem egocêntrica (ou fala autodirigida), longe de ser irrelevante, é o estágio intermediário onde o signo começa a assumir a função reguladora, ainda que externamente manifesta.
A internalização propriamente dita, segundo Luria, acontece quando essa fala autodirigida se torna silenciosa, abreviada e internalizada, transformando-se em pensamento verbal interno. Nesse estágio, o signo (agora um conceito, uma "voz interna", uma imagem simbólica) torna-se um instrumento intrapsicológico de autorregulação.
Luria, com sua formação médica e pesquisa neuropsicológica, evidenciou a base cerebral dessa transformação. Ele mostrou que o córtex pré-frontal, região que amadurece tardiamente e é essencial para o planejamento, inibição de impulsos e controle voluntário, é justamente a área que se desenvolve e se organiza funcionalmente a partir da internalização desses sistemas de signos mediadores.
Quando o signo é plenamente internalizado, ele permite ao indivíduo planejar ações futuras (antecipando consequências através do pensamento verbal), inibir respostas impulsivas (usando comandos internos como "pensa antes de agir"), dirigir e sustentar a atenção voluntária (ao invés de ser capturado apenas por estímulos externos), regular estados emocionais (atribuindo significados e utilizando estratégias simbólicas para acalmar-se) e monitorar e avaliar o próprio desempenho (comparando ações com metas internas representadas simbolicamente).
Em suma, Luria demonstrou que a autorregulação psicológica superior não é inata, mas construída neuropsicologicamente através da apropriação ativa e da internalização dos instrumentos simbólicos da cultura, transformando estruturas cerebrais e criando a capacidade humana única de governar a própria mente e conduta a partir de dentro. A falha nesse processo de internalização (por privação cultural, lesões cerebrais específicas ou interações mediadoras deficientes) resulta, portanto, em déficits fundamentais na capacidade de autorregulação, impactando profundamente a saúde mental.
A Internalização e o Uso de Signos na Vida Adulta: Um Processo Contínuo e Dinâmico
O processo de internalização e transformação dos signos culturais em instrumentos de autorregulação não se encerra na infância ou adolescência, mas continua de forma vital e dinâmica ao longo de toda a vida adulta, tornando-se cada vez mais complexo, abstrato e integrado. As contribuições de Luria, aliadas ao núcleo da teoria histórico-cultural, nos ajudam a entender como essa construção prossegue:
Sofisticação e Abstração dos Instrumentos Psicológicos:
Na vida adulta, os signos básicos (como palavras simples e comandos diretos) dão lugar a sistemas conceituais complexos e estruturas simbólicas de alto nível. Conceitos científicos, teorias filosóficas, modelos mentais profissionais, estruturas narrativas complexas (literatura, cinema), sistemas éticos e jurídicos tornam-se novos instrumentos psicológicos internalizados.
Luria demonstrou em seus estudos transculturais (como os famosos com camponeses iletrados vs. alfabetizados na Ásia Central Soviética) que a exposição a sistemas formais de conhecimento (como a escolarização e a lógica formal) reorganiza radicalmente o pensamento adulto, permitindo operações cognitivas abstratas, classificação categorial, planejamento de longo prazo e autorreflexão crítica que não eram possíveis apenas com instrumentos cotidianos concretos. O signo internalizado evolui de um regulador externo para um organizador interno de sistemas complexos de significado.
Linguagem Interna e Pensamento Verbal Contínuo:
O "pensamento verbal interno" descrito por Luria e Vygotsky não é estático. Na vida adulta, ele se torna um diálogo interno incessante e altamente elaborado. Usamos essa voz interior não apenas para inibir impulsos básicos, mas para:
Simular cenários: Antecipar consequências de decisões complexas (profissionais, afetivas, éticas) usando signos abstratos.
Resolver problemas intricados: Manipular conceitos e relações simbólicas mentalmente ("E se eu abordar o problema sob esta teoria?").
Regular emoções sofisticadas: Atribuir significados culturais e pessoais profundos às experiências (luto, paixão, frustração profissional), utilizando narrativas internas, conceitos psicológicos ou valores éticos internalizados para construir a resposta emocional.
Manejar conflitos internos: Mediar diálogos entre diferentes "vozes" internas (desejos, deveres, valores) através do signo.
Aprendizagem Contínua e Internalização de Novos Sistemas de Signos:
A vida adulta exige constantemente a apropriação de novos sistemas semióticos. Um profissional que aprende uma nova teoria ou metodologia, um imigrante que se apropria de uma nova língua e cultura, alguém que se engaja em uma prática espiritual ou artística – todos estão passando por processos ativos de internalização de novos instrumentos mediadores.
Como Luria mostrou, essa internalização não é mera memorização. Envolve uma reestruturação funcional – os novos signos se integram aos já existentes, criando novas redes de significado e novas formas de autorregulação específicas daquele domínio (e.g., o pensamento clínico de um psicólogo, o raciocínio jurídico de um advogado).
Mediação Social Contínua e ZDP na Vida Adulta:
A internalização na vida adulta continua sendo mediada socialmente, embora de formas mais sutis e igualitárias. Mentores, colegas de profissão, parceiros afetivos, grupos de estudo, comunidades online, terapeutas e até autores de livros atuam como mediadores externos que introduzem novos signos e conceitos, desafiam pensamentos estabelecidos e apoiam a internalização dentro de uma nova Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP).
Discussões profundas, supervisão profissional, terapia, leitura crítica e colaboração são exemplos de contextos sociais onde ocorre a reconstrução ativa de significados e a elaboração de novos instrumentos internos de regulação.
Autorregulação Avançada e Plasticidade Cerebral:
Luria, com sua ênfase neuropsicológica, forneceu a base para entender que este processo contínuo tem correlatos neurais. A plasticidade cerebral persiste na vida adulta, especialmente em áreas associativas como o córtex pré-frontal. A internalização e o uso constante de novos sistemas de signos fortalecem e refinam as redes neurais responsáveis pelo planejamento executivo, controle inibitório, flexibilidade cognitiva e regulação emocional complexa.
A autorregulação adulta atinge níveis de sofisticação impensáveis na infância: gerenciar múltiplas demandas simultâneas, regular respostas a frustrações crônicas ou injustiças complexas, manter motivação intrínseca para metas de longo prazo, agir de acordo com valores profundos em situações ambíguas – tudo isso depende da riqueza e do domínio dos instrumentos simbólicos internalizados.
Na vida adulta, o processo de internalização de signos transforma-se na constante elaboração, refinamento e aquisição de sofisticados sistemas conceituais e simbólicos que medeiam a autorregulação em níveis cada vez mais complexos. É um processo ativo, socialmente construído, que reestrutura funcionalmente o pensamento e as funções executivas (com base na plasticidade neural), permitindo ao indivíduo navegar as demandas intricadas da vida profissional, afetiva, social e existencial.
A saúde mental do adulto está, portanto, intrinsecamente ligada à sua capacidade contínua de se apropriar criticamente de novos instrumentos culturais e de utilizar seus sistemas simbólicos internalizados para dar sentido à experiência, regular a vida psíquica e agir de forma intencional e adaptativa em um mundo em constante mudança. A falha nesse processo contínuo pode levar ao empobrecimento do pensamento, à rigidez cognitiva e emocional, e à dificuldade de adaptação, fatores de risco para o adoecimento psíquico.
Referências
ANDRADE FILHO, J. A. L. A produção social dos transtornos de ansiedade: reflexões a partir da Psicologia Histórico-Cultural. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, [s. l.], 2022.
BRASIL. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Básica nº 34: Saúde Mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.
TAKEDA, L. Ansiedade e depressão são os principais vilões da saúde mental. Senado Federal, 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/04/24/ansiedade-e-depressao-sao-os-principais-viloes-da-saude-mental. Acesso em: 7 jun. 2025.
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