A palavra que organiza (ou desorganiza) o caos

Em nossa conversa anterior, desmistificamos a ideia simplista de "pensar positivo" como solução mágica para as dificuldades. Se a mudança não reside na tentativa forçada de "mudar a mente", onde está, portanto, a chave para lidar com as emoções complexas? A Psicologia Histórico-Cultural aponta para uma ferramenta fundamental, socialmente construída e acessível a todos nós: a linguagem.

10/6/20255 min read

Em nossa conversa anterior, desmistificamos a ideia simplista de "pensar positivo" como solução mágica para as dificuldades. Se a mudança não reside na tentativa forçada de "mudar a mente", onde está, portanto, a chave para lidar com as emoções complexas? A Psicologia Histórico-Cultural aponta para uma ferramenta fundamental, socialmente construída e acessível a todos nós: a linguagem.

Essa ferramenta, porém, não é um truque de mágica, mas sim a principal ferramenta psicológica que a humanidade desenvolveu para dar sentido ao mundo e a si mesma. É através da palavra, da comunicação, que transformamos um turbilhão de sensações e impulsos (o "caos") em algo nomeado, delimitado e, portanto, passível de ser pensado e manejado.

Para Quem Busca Terapia: Dar Nome aos Bois é Terapêutica

Você já se sentiu inundado por uma sensação que parecia não ter nome, apenas peso e incômodo? Quando vivemos uma situação difícil, o primeiro passo para sair do sofrimento não é sentir diferente, mas sim compreender o que está se passando. Por isso, encontrar as palavras certas para o que você sente é o início da organização.

Quando você diz "estou frustrado" em vez de apenas "estou mal", você faz mais do que relatar um estado. Você o delimita, o diferencia de outras emoções (como a raiva ou a tristeza), e começa a traçar a relação entre essa sensação e a situação concreta que a causou. Este movimento de nomear a emoção é o que nos permite deixar de ser simplesmente "objeto" do nosso sentimento (arrastados por ele) e passar a ser "sujeito" que pode refletir sobre ele.

É nesse processo de busca pela palavra-significado que a psicoterapia se torna essencial. Por exemplo, a palavra que usamos para a "ansiedade" não carrega apenas a definição do dicionário; ela carrega a vivência (Vigotski) que temos dela, ou seja, a forma como a cultura, a história de vida e o momento presente se condensam naquela experiência subjetiva única. O psicólogo atua como mediador nesse processo, ajudando a refinar e a desenvolver essa palavra que organiza, permitindo que você ganhe distância do problema para, então, planejar uma ação.

Portanto, esqueça a pressão de "pensar positivo" para mascarar a dor. Nossa abordagem é mais rigorosa: é preciso nomear o real, mesmo que ele seja doloroso, para que, a partir dessa clareza, possamos agir de forma consciente e intencional em nossa vida adulta.

Para Profissionais: A Linguagem como Função Planejadora e Reguladora

Na Psicologia Histórico-Cultural, a linguagem, ou a fala interna, é vista como o principal sistema de signos que medeia a relação entre o sujeito e o mundo, permitindo o desenvolvimento das Funções Psicológicas Superiores (FPS). Essa adquire, no desenvolvimento do indivíduo, uma dupla e crucial função.

Assim, no ambiente de trabalho (ou na crise pessoal), o nosso sucesso em lidar com o "caos" não depende de um pensamento etéreo, mas da nossa capacidade socialmente construída de usar a linguagem como ferramenta de autogoverno e planejamento. É esse desenvolvimento que buscamos na clínica e no aprimoramento profissional: refinar o instrumento da palavra para que ela organize a ação de forma cada vez mais consciente e voluntária.

Imagine o seguinte: você está em meio a uma crise no seu trabalho, com um prazo apertado, tarefas conflitantes e um chefe impaciente. A resposta imediata, o impulso (que seria a "reação elementar" do nosso psiquismo), é o caos emocional: o corpo tenciona, o coração dispara, e a vontade é de gritar ou fugir.

O que impede que você simplesmente sucumba a essa reação instintiva e destrutiva? A linguagem internalizada.

1. Função Reguladora: O Freio de Mão Cognitivo

Nesse momento de pico de estresse, a primeira coisa que você faz é recorrer a um conjunto de signos internos, suas "palavras reguladoras". Não se trata de uma frase mágica, mas do movimento de dar um comando a si mesmo, o que chamamos de autorregulação.

Exemplo: Em vez de reagir ao impulso de largar tudo, você "fala" para si mesmo: "Espere. O que eu estou sentindo é pânico devido à pressão do prazo. Eu não vou gritar com o colega, porque isso só vai piorar. Preciso respirar e primeiro entender o que é urgente."

O pânico é uma emoção real, mas a palavra "pânico" atua como um signo mediador. Ela coloca uma distância entre você e a sensação. É a palavra, internalizada em seu pensamento, que regula a sua conduta, freando a reação impulsiva e biológica de luta ou fuga. Você usa o signo para controlar seu comportamento e não o contrário.

2. Função Planejadora: A Ferramenta de Mapeamento

Depois de regular a resposta emocional, a linguagem assume sua função planejadora. É ela que permite que você saia do presente imediato e comece a construir uma linha de ação futura. Você usa o pensamento verbal para "mapear" o caminho a seguir.

Exemplo: Você não pega o primeiro papel na mesa. Você usa a linguagem para estruturar a realidade e priorizar as tarefas: "Certo. Tenho X, Y e Z para fazer. Qual tem a data limite mais próxima? X é o mais urgente, e Z depende do Y. Vou começar por X. Vou ligar para a Maria para delegar a parte C do projeto Y. Em duas horas, vou checar o e-mail para ver as demandas novas."

Aqui, a linguagem é o instrumento de organização mental. Ela permite:

  • Abstração: Retirar o problema do seu campo visual imediato e analisá-lo em categorias (urgente, dependente, delegável).

  • Sequencialização: Estabelecer uma ordem lógica no tempo (primeiro X, depois Y, e por último checar e-mail).

  • Previsão: Antecipar as ações e as necessidades futuras (ligar para Maria, checar e-mails em um momento específico).

Em síntese: A palavra, para o adulto, não é só uma forma de comunicação, mas o próprio mecanismo que ele utiliza para converter a reatividade em intencionalidade. A linguagem permite que a ação seja antecipada e planejada no plano mental antes de ser executada no plano prático. Não agimos apenas em resposta ao estímulo imediato; podemos formular verbalmente a situação, considerar consequências e definir metas futuras. É a linguagem que nos tira do aqui-e-agora animal e nos insere na dimensão histórica e intencional.

A Clínica como Espaço de Reorganização do Significado

Na prática clínica, o desenvolvimento do significado da palavra é central para a superação de crises e a reestruturação da personalidade adulta. Muitas vezes, o sofrimento do cliente pode residir em significados de palavras (como "sucesso", "culpa", "amor" ou "trabalho") que foram assimilados de forma acrítica na história social, mas que hoje desorganizam sua conduta.

O processo terapêutico, ancorado no materialismo histórico-dialético, exige que o profissional:

  • Identifique a crise de significado: Reconhecer onde as palavras do cliente não dão conta da sua realidade (ou a distorcem), gerando um "curto-circuito" entre afeto e intelecto (unidade afetivo-cognitiva).

  • Mediação para a reconstrução: Construir, junto ao paciente, novos e mais complexos significados para suas vivências, com o objetivo de contribuir com a qualificação de sua capacidade de autorregulação. O profissional auxilia o cliente a fazer uso consciente da linguagem como instrumento para planejar uma vida com novas relações com o mundo e consigo mesmo.

A palavra dita na terapia é, portanto, o signo que atua diretamente sobre o psiquismo, reestruturando a consciência e, consequentemente, o comportamento. Não se trata de sugestão, mas de desenvolvimento concreto da capacidade humana de planejar e regular a própria vida.

Referências:

Vigotski, L. S. (2001). A Construção do Pensamento e da Linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (2004). Teoria das Emoções: Estudo Histórico-Psicológico. São Paulo: Martins Fontes.

Vigotski, L. S. (1991). A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes.

Luria, A. R. (1991). As Funções Corticais Superiores do Homem. São Paulo: Ensaio.