Higiene do Sono: para além do biológico
O sono não é apenas um “desligar”. Ele é um processo ativo e complexo, essencial para a reparação física e psíquica. No entanto, sabemos que nada no desenvolvimento humano ocorre isolado ou de forma puramente natural. O sono, mesmo sendo baseado em processos biológicos, também está profundamente mediado pela cultura e pelas relações sociais. É a partir dessa perspectiva que vamos falar sobre a higiene do sono.
5/28/20254 min read
O sono não é apenas um “desligar”. Ele é um processo ativo e complexo, essencial para a reparação física e psíquica. Passamos por ciclos distintos: o adormecimento (fase 1), o sono leve (fase 2), o sono profundo e restaurador (fase 3) e o sono REM (onde ocorrem os sonhos e a consolidação da memória). Cada fase tem sua importância: restaurar tecidos, regular hormônios (como o cortisol, ligado ao estresse, e a melatonina, relacionada ao repouso), consolidar aprendizados e processar emoções. O sono, portanto, é fonte da energia vital que sustenta nossa vigília.
No entanto, sabemos que nada no desenvolvimento humano ocorre isolado ou de forma puramente natural. O sono, mesmo sendo baseado em processos biológicos, também está profundamente mediado pela cultura e pelas relações sociais. É a partir dessa perspectiva que vamos falar sobre a higiene do sono.
1. Para além do biológico: o sono como atividade culturalmente mediada
Nossas funções psicológicas superiores (pensamento, memória, atenção) se desenvolvem por meio da mediação de instrumentos e signos culturais (linguagem, símbolos), determinados pela organização social, política e econômica. E o que isso tem a ver com o sono? Tudo! Vamos ver alguns exemplos:
Ritmos e temporalidade:
Nossos horários de sono e vigília não dependem só do relógio biológico (ritmo circadiano). São determinados pelas horários de trabalho, escola, programação televisiva, iluminação artificial e até rituais familiares, como a “hora de dormir”. A sociedade industrial, por exemplo, criou o turno noturno, desafiando radicalmente os ritmos naturais – um claro exemplo de como a cultura passa a determinar a base biológica.
Rituais e significados:
O que fazemos antes de dormir (ler, tomar chá, rezar, assistir TV, rolar o feed das redes sociais) são práticas mediadas culturalmente, que sinalizam a transição para o sono. Esses rituais são aprendidos, internalizados e carregados de significados específicos em cada contexto.
O espaço do dormir:
A ideia de um quarto privado, silencioso e escuro como espaço dedicado ao sono é uma construção histórica e cultural. Nem todas as culturas – ou mesmo classes sociais dentro de uma mesma cultura – têm acesso a esse “ideal”. A privação de um espaço adequado reflete desigualdades sociais que impactam diretamente a qualidade do sono.
Mediação tecnológica:
A luz elétrica, os smartphones, as TVs e os computadores são instrumentos culturais que alteraram profundamente nossa relação com a noite e o descanso. A luz azul, por exemplo, inibe a produção de melatonina, e conteúdos estimulantes (notícias, redes sociais) mantêm o sistema nervoso em alerta, dificultando o repouso – mostrando um claro conflito entre necessidade biológica e mediações culturais.
Condições sociais adversas:
Jornadas de trabalho exaustivas, precariedade material, inseguranças financeiras e as demandas sociais de cuidado (especialmente das mulheres) são condições concretas que dificultam o descanso.
2. Os prejuízos silenciosos da privação
A falta de sono reparador não se resume ao cansaço. É um estressor crônico com consequências amplas:
Cognitivas: prejuízos na atenção, memória, tomada de decisão e criatividade.
Emocionais: maior irritabilidade, ansiedade, labilidade emocional e risco de depressão.
Físicas: sistema imunológico fragilizado, maior risco de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e hipertensão.
Sociais: dificuldade de regulação emocional nas relações e menor empatia.
A boa notícia é que, por ser uma atividade mediada, podemos intervir conscientemente para melhorar o sono. Não se trata de fórmulas mágicas, mas de reconhecer e reorganizar as mediações culturais.
3. Higiene do sono na perspectiva histórico-cultural: mais que regras, mediação consciente
Compreender o sono como uma atividade mediada nos leva a entender a higiene do sono não como uma lista rígida de “faça e não faça”, mas como um processo de conscientização e reorganização das mediações que envolvem nosso descanso. É um convite a assumir um papel ativo:
Consciência das mediações: identifique os instrumentos e signos culturais que afetam seu sono (excesso de telas à noite, horários desregulados, ambiente barulhento, preocupações internalizadas sobre produtividade). Reflita sobre o significado que você atribui ao momento de dormir: é “tempo perdido” ou uma necessidade vital?
Criação de novos instrumentos e signos: proponha rituais que sinalizem o repouso:
Substitua a luz azul por luz amarela ou por leitura física.
Transforme preocupações em registros num diário ou use técnicas de relaxamento.
Crie um ambiente de descanso no quarto (escuro, silencioso, organizado, temperatura agradável).
Estabeleça horários regulares como sinais temporais que auxiliam a regulação biológica.
Contexto social: reconheça que condições materiais e sociais (trabalho, insegurança financeira, barulho urbano, responsabilidades de cuidado) também são mediações importantes. A luta por melhores condições de vida e trabalho é também uma luta por um sono coletivo de qualidade. A culpa pela insônia não é apenas individual!
Não se trata de negar a biologia, mas de entender como ela é constantemente atravessada e tensionada pela cultura e pelas condições sociais em que vivemos. Tomar consciência dessas mediações e criar ativamente outras, mais favoráveis, é exercer nossa capacidade de agir de forma consciente para usufruirmos melhor nossas preciosas horas de descanso.
Mas, atenção:
Este texto, voltado ao público geral, busca introduzir o tema do sono pela perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, abordando suas bases biológicas, determinantes sociais e a possibilidade de intervenção crítica e consciente. No entanto, cada pessoa tem uma história única, com condições materiais específicas, dificuldades específicas com o sono (como insônia crônica ou apneia) e vivências singulares. As técnicas aqui descritas são orientações gerais e não substituem a avaliação e o acompanhamento individualizado por profissionais de saúde (médicos, psicólogos). Um processo psicoterapêutico pode ajudar a compreender as raízes singulares das dificuldades com o sono e a construir estratégias significativas para cada um. Cuide do seu sono, mas não hesite em buscar ajuda especializada quando necessário!
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