O Cuidado em Liberdade Sob Ataque em Campinas: Defender o Cândido Ferreira é Lutar por uma Sociedade Sem Manicômios
Neste artigo, abordamos a atual crise envolvendo o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira em Campinas, diante da possível não renovação do contrato por parte da prefeitura. Uma reflexão urgente sobre o avanço neoliberal, o risco de mercantilização da saúde e a necessidade de fortalecer o cuidado em liberdade como prática ética e política, sob a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural.
6/7/20256 min read


O Cuidado em Liberdade Sob Ataque: Defender o Cândido Ferreira é Lutar por uma Sociedade Sem Manicômios
O Brasil vive, nas últimas décadas, um contínuo tensionamento em torno da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial. Em Campinas, esse processo ganhou contornos dramáticos: a Prefeitura anunciou que, até o momento, não renovará o contrato com o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, responsável por boa parte dos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município. Essa decisão, que afeta diretamente o cuidado em saúde mental de milhares de pessoas, coloca em xeque um modelo consolidado de atenção comunitária e em liberdade — e representa uma grave ameaça ao legado da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Raízes da Luta: Um Movimento Social Contra a Exclusão
É fundamental entender que a luta antimanicomial no Brasil não é apenas uma pauta técnica de reestruturação de serviços, mas um movimento social construído coletivamente por trabalhadores, usuários, familiares e militantes. Inspirada por experiências internacionais como a desinstitucionalização italiana (liderada por Franco Basaglia), essa luta ganhou corpo no país a partir dos anos 1970, articulada aos movimentos pela redemocratização. Ela denunciou os manicômios como espaços de exclusão, violência e morte, reivindicando um projeto ético, estético e político baseado no cuidado em liberdade, na cidadania e no protagonismo dos sujeitos.
O modelo manicomial combatido por esse movimento sempre teve um caráter higienista, focado na segregação dos indesejáveis. Essa lógica de exclusão tem raízes profundas, que remontam à chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808. A necessidade de transformar o Rio de Janeiro em uma corte "civilizada" aos moldes europeus impulsionou um projeto de "limpeza social", no qual a loucura, a mendicância e a vadiagem deveriam ser retiradas do espaço público. Foi nesse contexto que se inaugurou, em 1852, o Hospício de Pedro II, o primeiro manicômio do Brasil, que institucionalizou o modelo de isolamento como política de Estado. Não à toa, os alvos históricos desse modelo sempre foram os corpos dissidentes: pobres, negros, mulheres, pessoas com deficiência, LGBTQIAP+ e opositores políticos.
A Conquista da Lei e a Construção da Rede
A grande vitória legal desse movimento foi a promulgação da Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei Paulo Delgado, que instituiu a Reforma Psiquiátrica no país. Essa lei, contudo, foi o resultado de mais de uma década de tramitação no Congresso e de uma intensa mobilização social que vinha desde o "Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental" no final dos anos 70. O processo de reforma foi construído na prática, em intervenções em hospitais psiquiátricos e na criação dos primeiros serviços substitutivos, como os CAPS. Foi nesse exato contexto histórico que o Cândido Ferreira iniciou sua transformação, no começo dos anos 1990. A sua transição de hospital para uma rede de serviços comunitários não foi um fato isolado, mas um dos laboratórios vivos mais importantes da Reforma Psiquiátrica brasileira, mostrando na prática que era possível cuidar sem prender.
A lei consolidou a substituição do modelo hospitalar por uma rede de cuidado substitutiva: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS é, por definição, territorializada, pois atua nos locais onde as pessoas vivem; comunitária, por se organizar com a participação dos sujeitos e suas comunidades; e intersetorial, por exigir articulação com outras políticas públicas (educação, assistência social, cultura, trabalho). Em Campinas, essa rede é referência nacional, e o Cândido Ferreira tornou-se o gestor de grande parte dela.
Atualmente, o Cândido administra 11 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além de Consultórios na Rua, Residências Terapêuticas (RTs), Centros de Convivência e equipes de atenção básica. Os CAPS são o coração dessa rede, serviços de portas abertas que oferecem cuidado contínuo e intensivo a pessoas em sofrimento psíquico. As RTs, por sua vez, são moradias para egressos de longas internações, garantindo um lar e o direito à vida em comunidade. É crucial não confundir esses dispositivos com as Comunidades Terapêuticas (CTs), instituições majoritariamente privadas e religiosas que, infelizmente, foram incluídas na RAPS por uma inflexão conservadora na política nacional e que, frequentemente, violam direitos humanos com práticas punitivas e de segregação, representando um imenso retrocesso.
O Impacto do Desmonte: Números, Vidas e Retrocessos
O fim do contrato com o Cândido Ferreira significa o desmonte dessa complexa estrutura de cuidado. Os impactos são concretos e devastadores:
Desassistência: Mais de 5.000 usuários mensais correm o risco de ficar sem cuidados. A descontinuidade abrupta de tratamentos de longa data rompe vínculos terapêuticos, desorganiza vidas e pode levar a crises graves, sobrecarregando outros pontos da rede de saúde.
Precarização: Estão previstas demissões em massa de cerca de 150 trabalhadores diretos, o que representa não apenas uma tragédia para centenas de famílias, mas a perda de uma força de trabalho qualificada e comprometida com o cuidado em liberdade, além de sobrecarregar outras áreas do SUS.
Avanço da Mercantilização: O desmonte de um serviço público robusto abre brechas para o avanço de instituições privadas, das controvérsias comunidades terapêuticas e de uma lógica de internações compulsórias. Em um cenário de avanço neoliberal, os cortes nos serviços públicos favorecem a mercantilização da vida, tratando a saúde como mercadoria e não como direito.
A Luta que nos Convoca: Liberdade é Terapêutica e Inegociável
O caso de Campinas não é isolado. Ele revela as tensões entre um projeto de sociedade pautado nos direitos e outro atravessado por interesses mercantis, moralistas e autoritários. Desde o anúncio da prefeitura, diversos atos, assembleias e manifestações vêm sendo organizadas por trabalhadores, usuários e movimentos sociais da cidade, demonstrando que a luta antimanicomial continua viva e pulsante.
Sob a ótica da Psicologia Histórico-Cultural, compreendemos que o sujeito se constitui nas e pelas relações sociais. O sofrimento psíquico não é um defeito meramente individual ou biológico, mas uma expressão das contradições, violências e impossibilidades vividas na concretude da vida social. Portanto, a resposta a esse sofrimento não pode ser o isolamento, que apenas aprofunda a alienação. O cuidado em liberdade é o único caminho coerente, pois ele opera na reconstrução dos laços sociais, na mediação de novas possibilidades de existência e na apropriação de ferramentas culturais (como a arte, o trabalho e a política) que permitem ao sujeito transformar a si e a sua realidade.
Frente a isso, reforçar a organização coletiva é indispensável, a luta antimanicomial sempre existiu por meio de ações no território: ocupações, conferências, atos, audiências públicas, pressão em conselhos e no Ministério Público. Defender o Cândido Ferreira é defender uma concepção de sociedade em que a saúde mental é construída no território, com afeto, cultura e laços sociais. Ainda que os serviços públicos estejam inseridos nas contradições do sistema capitalista, e que a lógica da produtividade os atravesse, é dentro deles que podemos sustentar práticas que tensionam essa racionalidade.
Lutar pela continuidade e pelo fortalecimento do cuidado em liberdade é afirmar que a liberdade é terapêutica e inegociável. É lutar para transformar as condições que nos adoecem e nos limitam, afirmando que o cuidado de que precisamos não cabe dentro das cercas do capital.
Quer contribuir para esta luta? Assine o abaixo assinado contra o fim do convênio entre a prefeitura e o Cândido Ferreira e em defesa a Rede de Saúde Mental de Campinas pelo link: https://acesse.one/5uiIR
Referências:
AMARANTE, P. (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007.
BASAGLIA, F. A Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 abr. 2001.
GALLO, C. I. Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira: da comunidade terapêutica à rede de diversidade e inclusão social. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.
YASUI, S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Centro de Ciências da Saúde, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006.
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