O desvio que se torna rota: uma visão histórico-cultural sobre TDAH, dificuldades e potenciais

A Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no pensamento de L. S. Vigotski, nos oferece uma perspectiva radicalmente diferente do que estamos acostumados a ouvir sobre o TDAH. E se o desvio não for apenas um desvio, mas o início de uma nova rota? E se a dificuldade, em vez de um ponto final, for o ponto de partida para a criação de potenciais únicos? Nesta postagem, é desse tema que trataremos!

10/13/20255 min read

Frequentemente, um diagnóstico como o de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é recebido e compreendido socialmente como um carimbo de incapacidade ou limitação. A pessoa é vista a partir do que lhe falta: falta atenção, falta controle, falta organização. Essa perspectiva, focada na ausência, pode gerar sofrimento, estigma e uma busca incessante por se "encaixar" em um modelo de normalidade que parece inalcançável.

Contudo, a Psicologia Histórico-Cultural, fundamentada no pensamento de L. S. Vigotski, nos oferece uma perspectiva radicalmente diferente e mais potente para compreender o desenvolvimento humano. E se o desvio não for apenas um desvio, mas o início de uma nova rota? E se a dificuldade, em vez de um ponto final, for o ponto de partida para a criação de potenciais únicos?

Para quem convive com as dificuldades: a potência que nasce do obstáculo

Imagine que você precisa chegar a um lugar, mas a estrada principal está bloqueada. O que você faz? Você procura caminhos alternativos, explora novas ruas, talvez descubra um atalho que ninguém conhecia ou uma paisagem que de outra forma nunca veria. No final, você não apenas chega ao seu destino, mas o faz de uma maneira singular, desenvolvendo um conhecimento sobre o terreno que outros, seguindo o caminho padrão, não possuem.

De forma análoga, é assim que podemos pensar as características associadas ao TDAH. A dificuldade em manter o foco em uma única tarefa por longos períodos, por exemplo, pode impulsionar o desenvolvimento de uma agilidade mental notável, uma capacidade de conectar ideias aparentemente díspares e de resolver problemas de forma criativa e não-linear. A inquietude motora pode se converter em uma fonte de energia para atividades que demandam dinamismo e ação.

Essa não é uma visão romantizada da dificuldade, mas uma compreensão dialética do desenvolvimento. A necessidade gerada por um obstáculo impulsiona a criação de ferramentas psicológicas e práticas para superá-lo. Ao longo da vida, a pessoa com TDAH, em sua interação com o mundo e com os outros, não está apenas "lidando" com um transtorno; ela está ativamente construindo formas sofisticadas de compensação. Essas formas não são meros "truques", mas funções psicológicas complexas e potentes, desenvolvidas precisamente porque o caminho "típico" não estava disponível.

Na psicoterapia, o objetivo não é "eliminar" o TDAH, mas sim tomar consciência dessas rotas alternativas que você construiu. É um trabalho de identificar, nomear e se apropriar e da suas potências, compreendendo e construindo estratégias compensatórias que podem ser utilizadas de forma consciente e a seu favor nos diversos âmbitos da vida, seja no trabalho, nos estudos ou nas relações pessoais.

Para Profissionais: a "defectologia" de Vigotski e o desenvolvimento atípico

Para aprofundar essa discussão, é fundamental resgatar os estudos de Vigotski sobre o que ele denominou "defectologia". Embora o termo soe datado, seu conteúdo é revolucionário e central para uma prática psicossocial rigorosa. Vigotski (1997) postula que um "defeito" (seja ele de origem orgânica ou funcional) não deve ser entendido como uma simples deficiência ou ausência. Ele é, antes de tudo, um catalisador que reorganiza todo o sistema psicológico do indivíduo.

O autor nos alerta contra a análise quantitativa do desenvolvimento – a ideia de que uma criança ou adulto com uma dificuldade é simplesmente "menos desenvolvido" que seus pares. A verdadeira tarefa, segundo ele, é a análise qualitativa: compreender como o desenvolvimento se reestrutura. O postulado central é o da compensação, um processo que não é meramente biológico, mas social e cultural.

A compensação, na perspectiva vigotskiana, acontece no plano social. A dificuldade primária (de base orgânica, por exemplo) gera dificuldades secundárias, que são os impedimentos criados na interação social (o estigma, as barreiras pedagógicas, a exclusão). É na superação dessas barreiras secundárias, através da mediação de outras pessoas e de instrumentos culturais (a linguagem, a escrita, os sistemas de organização), que a verdadeira compensação ocorre, devido a plasticidade cerebral. O desenvolvimento é impulsionado "para cima", pela cultura.

No caso do TDAH em adultos, podemos pensar em como a dificuldade na regulação da atenção é compensada pelo desenvolvimento de outras funções. Aqui, vemos como, alterando um parte do funcionamento psicológico típico, altera-se todo o sistema funcional. Por exemplo:

  1. Hiperfoco: A conhecida capacidade de imersão profunda em tarefas de grande interesse não é o oposto do déficit de atenção, mas uma complexa reorganização do funcionamento atencional, mediada pela motivação e pelo significado da atividade.

  2. Pensamento não-linear: A dificuldade em seguir uma rota linear de pensamento pode levar ao desenvolvimento de uma habilidade superior para o pensamento associativo e criativo, uma potência para profissões e atividades que exigem inovação.

  3. Mediação externa como ferramenta: O uso consciente de agendas, alarmes, aplicativos e sistemas organizacionais externos não é um sinal de fraqueza, mas a internalização de instrumentos culturais para a autorregulação, um processo de desenvolvimento de funções psicológicas superiores, conforme descrito por Vigotski.

A Realidade do Sofrimento: Quando a Rota Alternativa Cansa

É crucial afirmar que reconhecer as potências não significa apagar as dificuldades. A vivência de uma pessoa neurodivergente em uma sociedade majoritariamente organizada por e para a neurotipicidade é, muitas vezes, marcada pelo sofrimento. A mesma característica que pode ser uma potência em um contexto, torna-se uma fonte de dor e exaustão em outro.

O hiperfoco, que permite uma produtividade imensa em um projeto de paixão, é o mesmo que torna a transição entre tarefas uma barreira quase intransponível. Sair desse estado de imersão para atender a uma demanda externa, por mais simples que seja, pode ser fisicamente desconfortável e mentalmente custoso, gerando procrastinação e acúmulo de pendências. Da mesma forma, essa intensidade de foco pode se manifestar de maneira prejudicial nas relações. Ficar "hiperfocado" em uma briga, remoendo um argumento ou uma injustiça percebida, impede a flexibilidade de pensamento necessária para resolver o conflito, transformando um desacordo em um loop de sofrimento e desgaste para todos os envolvidos.

O pensamento criativo e não-linear, tão valioso para a inovação, pode se traduzir em uma imensa dificuldade para organizar um relatório, seguir um passo a passo burocrático ou simplesmente organizar as finanças pessoais. A exigência social por linearidade e previsibilidade colide diretamente com esse modo de funcionamento, gerando frustração e a sensação de inadequação.

Além disso, o próprio ato de compensar tem um custo energético altíssimo. Manter as agendas, lutar contra a procrastinação em tarefas cotidianas, "mascarar" a inquietude em uma reunião longa – todo esse esforço de autorregulação consome recursos mentais que, para uma pessoa neurotípica, seriam poupados. O resultado frequente é o esgotamento, a ansiedade e o burnout.

O sofrimento, portanto, não está "no" TDAH em si, mas na fricção constante entre o modo de ser do sujeito e as engrenagens de um mundo que exige um ritmo, uma organização e uma forma de atenção que não lhe são naturais. A psicoterapia, dentro da Psicologia Histórico-Cultural, acolhe essa dor. Ela não busca apenas valorizar a rota alternativa, mas também construir as pontes e ferramentas necessárias para transitar pela estrada principal quando for preciso, reduzindo o custo emocional e promovendo uma apropriação consciente tanto das potências quanto das estratégias para lidar com os desafios concretos do dia a dia.

A prática clínica e o trabalho de supervisão sob esta perspectiva se afastam de um modelo médico-normativo de "correção de déficits". O objetivo é investigar, junto ao sujeito, a história de seu desenvolvimento, identificando as soluções e as rotas criadas por ele para lidar com as exigências sociais, bem como auxilia-lo a construir novas rotas, se necessário. O papel do psicoterapeuta é atuar como mediador, auxiliando na tomada de consciência sobre essas potências e na sua organização para uma vida autodeterminada, em uma clara articulação entre a teoria materialista histórico-dialética e a prática.

Referências:

  • Vigotski, L. S. (1997). Obras Escogidas, Tomo V: Fundamentos de Defectología.

  • Vygotsky, L. S. (2004). The collected works of L. S. Vygotsky, Vol. 2: The fundamentals of defectology (Abnormal psychology and learning disabilities). New York: Springer.

  • Damianova, M. K. & Sullivan, G. B. (2011). Vygotsky, the 'great dissident': A critical review of his contribution to learning and disability. The Educational and Developmental Psychologist, 28(2), 115-135.