Saúde Mental na Perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural: Uma Construção Coletiva
A Psicologia Histórico-Cultural, fundada por Lev Vygotsky e desenvolvida por seus colaboradores, oferece uma compreensão profunda e radicalmente social da saúde mental. Diferente de visões que a restringem ao funcionamento biológico individual ou à mera ausência de transtornos, esta abordagem nos convida a enxergar a saúde mental como um processo dinâmico, histórico e culturalmente mediado, intimamente ligado ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Confira os pilares que orientam nossa conduta clínica.
6/10/20254 min read
A Psicologia Histórico-Cultural, fundada por Lev Vygotsky e desenvolvida por seus colaboradores, oferece uma compreensão profunda e radicalmente social da saúde mental. Diferente de visões que a restringem ao funcionamento biológico individual ou à mera ausência de transtornos, esta abordagem nos convida a enxergar a saúde mental como um processo dinâmico, histórico e culturalmente mediado, intimamente ligado ao desenvolvimento das funções psicológicas superiores.
Aqui estão os pilares dessa perspectiva:
1. A Mediação Cultural como Essência da Mente Humana:
Para Vygotsky, o que distingue os humanos dos outros animais é a capacidade de usar instrumentos psicológicos (ou signos), como a linguagem, sistemas numéricos, arte, escrita, símbolos e conceitos. Esses instrumentos são produtos culturais criados ao longo da história da humanidade. Nossa relação com o mundo e com nós mesmos não é direta, mas mediada por esses instrumentos culturais e por outras pessoas, que nos apresentam esses instrumentos. Aprendemos a pensar, sentir, lembrar e resolver problemas através da linguagem, dos conceitos e das práticas sociais internalizadas.
Saúde Mental implica, portanto, no acesso e no domínio efetivo desses instrumentos culturais mediadores. É a capacidade de utilizar os recursos simbólicos da cultura para regular as emoções, compreender a si mesmo e ao mundo, planejar ações, resolver conflitos e estabelecer relações significativas.
2. Desenvolvimento como Internalização das Relações Sociais:
O desenvolvimento psicológico individual não ocorre no vácuo. Ele acontece primeiro no plano interpsicológico (entre pessoas, nas relações sociais) e só depois é internalizado, tornando-se intrapsicológico (dentro do indivíduo). As funções psicológicas superiores (pensamento abstrato, atenção voluntária, memória lógica, autocontrole emocional) são construídas socialmente. Emergem das interações da criança com os adultos e pares mais experientes dentro de um contexto cultural específico.
Saúde Mental está ligada à qualidade e riqueza dessas interações sociais mediadoras. Um ambiente social empobrecido, com poucas oportunidades de interação significativa e mediação qualificada, dificulta o desenvolvimento pleno dessas funções superiores.
3. A colaboração e a promoção de saúde:
A perspectiva histórico-cultural desloca o foco da saúde mental de um fenômeno puramente individual para um processo essencialmente relacional e colaborativo. A promoção efetiva da saúde mental não ocorre no isolamento, mas floresce na teia dinâmica das interações sociais mediadas por signos, onde os indivíduos atuam simultaneamente como aprendizes e mediadores uns dos outros. Inspirado no conceito vygotskyano da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), este pilar enfatiza que o desenvolvimento das capacidade da pessoa avança precisamente nos espaços de colaboração significativa.
É na interação com parceiros mais experientes ou pares em níveis similares que desafios são apresentados, instrumentos culturais (linguagem, conceitos, estratégias) são oferecidos e internalizados, e novas habilidades são construídas.
A promoção da saúde mental ocorre justamente na criação de contextos sociais que ofereçam mediação adequada dentro da ZDP dos indivíduos. São espaços que desafiam, apoiam e fornecem os instrumentos culturais necessários para superar dificuldades e ampliar capacidades.
4. A Historicidade e a Cultura:
Os instrumentos mediadores e os significados atribuídos à experiência variam ao longo da história e entre diferentes culturas. O que é considerado "saudável" ou "adaptativo" em um contexto histórico-cultural pode não sê-lo em outro.
Saúde Mental não é um estado universal e atemporal. Ela é definida em relação às demandas, valores e recursos simbólicos disponíveis em uma determinada cultura e época. Está ligada à capacidade do indivíduo de se inserir criticamente e de forma produtiva nesse contexto, utilizando os recursos culturais para enfrentar seus desafios.
5. Consciência e Sentido Pessoal:
Leontiev enfatizou a importância da atividade orientada por motivos e da formação da consciência através da internalização das relações sociais. Saúde Mental envolve a capacidade de atribuir sentido pessoal às próprias ações e experiências, integrando-as em uma narrativa coerente de si mesmo. Pressupõe um certo grau de consciência sobre os próprios motivos e a relação entre a atividade individual e o contexto social mais amplo. A alienação (perda de sentido e controle sobre a própria atividade) é vista como um fator de adoecimento.
Implicações e Conclusão:
Pela perspectiva histórico-cultural, a saúde mental não é um atributo fixo dentro do indivíduo, mas um processo contínuo de desenvolvimento mediado culturalmente. Ela depende crucialmente:
Do acesso a recursos culturais ricos e diversificados (educação, arte, literatura, espaços de diálogo).
Da qualidade das interações sociais e da presença de mediadores competentes ao longo da vida.
Das condições materiais e sociais que permitam a participação plena na vida cultural e produtiva da comunidade (combate à desigualdade, acesso a direitos básicos).
Da capacidade de utilizar os instrumentos culturais para regular a vida emocional, resolver problemas, estabelecer relações e construir sentido existencial.
Portanto, problemas de saúde mental são frequentemente entendidos como rupturas ou dificuldades nesse processo de mediação e desenvolvimento: falta de acesso a instrumentos culturais adequados, experiências de mediação inadequada ou traumática, contextos sociais opressivos que impedem a expressão e o desenvolvimento pleno, ou bloqueios na internalização de recursos simbólicos para lidar com as demandas da vida.
Promover saúde mental, nessa perspectiva, significa investir na criação de ambientes sociais enriquecedores, garantir educação de qualidade, combater exclusões e oferecer mediação qualificada, possibilitando que todos os indivíduos desenvolvam plenamente suas funções psicológicas superiores e encontrem sentido em sua existência dentro de seu contexto histórico-cultural.
Em resumo: A saúde mental, para a Psicologia Histórico-Cultural, é a capacidade humana, socialmente construída e culturalmente mediada, de utilizar os recursos simbólicos da cultura para regular a vida psíquica, agir no mundo de forma intencional e significativa, e participar criticamente da vida coletiva, em constante processo de desenvolvimento ao longo da história individual e social.
Referências:
GONÇALVES, F. A psicologia clínica na perspectiva histórico-cultural: fundamentos e desafios. Revista Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 26, n. esp., p. 144-153, 2014.
Aita, E. B. (2020). Psicoterapia enquanto possibilidade de intervenção sobre o processo de formação de consciência: uma análise histórico-cultural (Tese de Doutorado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, Maringá.
DELARI JR., A. O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais.
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